sábado, 3 de abril de 2004

ENSAIO SOBRE A BRANCURA

O Escritor transforma em palavras o fruto da sua imaginação, enquanto o Leitor recebe a informação, absorve as palavras e digere as ideias. Sempre achei demasiado redutora esta relação Escritor – Leitor. Para mim, a escrita é uma forma de arte e portanto tem de ser deixada ao leitor uma quota-parte da interpretação. Lembrei-me de suprimir qualquer espécie de pontuação. Deixei de utilizar vírgulas, pontos, exclamações e interrogações. Deixei ao leitor o trabalho de dar a cada texto a entoação e o ritmo que melhor lhe aprouvesse. Ao princípio houve reacções dos mais puritanos e até problemas de fôlego e necessidade de pausas para respiração. Alguns leitores voltavam atrás pensando que se tinham perdido no emaranhado das palavras. A pouco e pouco foram-se habituando e eu desejei ir mais além.
No livro seguinte suprimi tudo o que não fossem verbos, adjectivos ou substantivos. Ao leitor o acto supremo da criação literária. A ligação entre as palavras principais. Os críticos aceitaram bem esta forma de escrita e poucos se acharam capazes de manifestar discordância. Havia que continuar. Afinal eu descobria, dia após dia, a forma de sublimar a literatura como obra colectiva.
Numa etapa seguinte, suprimi os verbos. O leitor que utilizasse os mais indicados, nos tempos mais adequados. Os meus livros continuavam a ser bem aceites por todos e eu continuei imparável. Passei a ignorar os adjectivos. Cada um que me lesse escolheria aqueles que melhor lhe soassem. E a boa aceitação foi geral. Tudo estava preparado para eu atingir o clímax. O próximo livro seria um livro em branco.
Durante muitas noites, sentei-me em frente do computador e escrevi, escrevi, até o cansaço me vencer e os olhos se quererem fechar. Então, apagava tudo o que havia escrito e deitava-me tranquilo, adormecendo rapidamente. Na noite seguinte continuava. Passadas semanas, olhei com orgulho o monte de folhas imaculadamente brancas, posicionadas ao lado do computador.
Faltava o título. «Ensaio sobre a brancura» lhe chamei. O original foi para a editora e a impressão foi rápida, por motivos óbvios. Em breve os exemplares do meu novo livro enchiam os escaparates das livrarias. Na sessão de lançamento, para a qual foram convidados reputados nomes das artes, das letras e da política, a opinião era unânime: estava-se perante uma nova forma de expressão em que o leitor era cúmplice do autor, valorizando e diversificando a interpretação da obra. Formou-se uma fila interminável de pessoas que, após adquirirem o livro, queriam uma dedicatória. Desajeitada e timidamente eu lá ia escrevendo, pedindo desculpa de aquela ser a parte, juntamente com a capa, em que a imaginação do público não era necessária.
A primeira edição esgotou-se em poucos dias e as grandes editoras estrangeiras prepararam também a publicação do livro. Pela primeira vez estavam perante um livro que não necessitava de tradução.
A crítica, tirando as más-línguas do costume, foi unânime no elogio da obra. Uns debruçaram-se mais sobre o conteúdo, outros sobre a forma. Entretanto, eu – no meu refúgio – continuo a tentar encontrar modos de tornar o mundo mais branco.

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