terça-feira, 31 de agosto de 2004

A Noite Que Começa no Dia


Por EDUARDO PRADO COELHO
«Público» 31 de Agosto de 2004


Já em Paris eu tinha feito uma experiência semelhante: ir ao Ikea, uma nova concepção de venda de móveis e objectos para a casa. Tinha ficado com a ideia de que o que se poupava em termos de dinheiro tinha um custo em desgaste psicológico. Obtive em Portugal a confirmação. Por um lado, é óbvio que há um certo número de coisas em que se poupa dinheiro: umas valem a pena, outras menos.
Em muitas, para além do esforço em arranjar transporte para móveis de dimensões consideráveis, somos confrontados com a terrível experiência de termos de os montar segundo esquemáticas instruções cuja leitura nos induz numa catadupa de erros. Mas há uma lógica dos erros, porque, quando compramos um móvel mais ou menos igual seis meses depois, voltamos a cometer os mesmos disparates e a começar tudo do princípio, martelinho em punho, chave de fendas e parafusos que rodopiam pelo chão. Trata-se de uma operação delicada, que exige uma paciência oriental, mas que é compensada pela alegria de vermos uma secretária tomar forma e de contemplarmos com orgulho a estante que conseguimos erguer.
É claro que a experiência de economizar em cada objecto que adquirimos tem uma contrapartida: compramos mais objectos do que aquilo que pensávamos no início. "Olha aquilo que barato!", é uma frase que se ouve repetidas vezes entre marido e mulher (habitualmente por ordem inversa). Mas a verdade é que a estratégia de "marketing" de Ikea foi desde o início extremamente bem concebida. E pôr pessoas a dormir à porta na data de inauguração foi uma ideia de génio. Estas coisas funcionam e têm um pitoresco irresistível.
Um dos elementos desta estratégia consiste em criar um espaço de desorientação assegurada. A gente procura por onde entrar e é-nos dado um papelinho que deverá ser preenchido à medida que escolhemos os objectos de formato avantajado. A isto correspondem números de corredores e filas onde esses objectos se encontram - quando se encontram. Porque a minha escolha revelou-se infrutífera, uma vez que o objecto estava esgotado (suponho, porque não havia ninguém para me esclarecer). Entretanto, a gente vai rodando, passa três vezes pelo mesmo sítio, não consegue reencontrar o sítio onde já passou e onde viu algo que lhe interessava, e deixou de saber onde se situam os pontos cardeais. Sente um cansaço progressivo, aproveita a zona dos sofás para descansar um pouco, mas aparentemente não consegue parar.
O curioso desta situação tem também a ver com a noção do tempo. No elevador, uma filha dizia para a mãe que já eram nove horas. E a mãe dizia que pensava que não passava das seis. A noção das horas vai-se desvanecendo e a noite começa no interior do dia. Todos os contactos com a vida exterior foram cortados e entrámos no longo corredor do Ikea, que pouco a pouco se tornou a casa de todas as casas.

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