sexta-feira, 10 de setembro de 2004

Conto Infantil



BONECA DE TRAPOS


Chamo-me Rita e sou uma boneca de trapos. Não nasci como as crianças nem hei-de morrer como os homens, mas tenho muitas parecenças com eles. Tive um começo, como tudo o que existe no Universo, e hei-de ter um fim, não sei ainda qual nem quando. Até lá, mudarei mais algumas vezes de mãos até que alguém – farta de mim – me guardará de novo num sótão ou numa arca. Ou talvez me ponha numa lixeira e eu seja achada por uma menina pobre, que me recuperará para o mundo dos brinquedos.

Ao longo dos anos, fui perdendo a cor e a graça. Às vezes senti-me esfarrapada e, nesses momentos, temi ser deitada fora. Mas tive sorte. Havia sempre alguém que me cosia, me cuidava, me punha de novo bonita e me recolocava nas mãos duma criança.
Amo as crianças, pela forma como sempre me trataram. Mesmo quando eram mais ríspidas e me batiam ou davam castigos, não faziam mais do que mimar o procedimento dos pais, tratando-me como o seu bebé.
Ainda me lembro da senhora que me fabricou, há muitos anos. Parece que estou a ver a salinha onde ela trabalhou o meu corpito. Devia ser costureira, pois só se viam tecidos e linhas por todo o lado, até no chão. Uma velha máquina de costura, uma cadeira e umas prateleiras era tudo o que mobilava aquela sala. Segundo conversas que ouvi, havia cada vez menos trabalho e ela via-se obrigada a fazer bonecas e a vendê-las para ganhar algum dinheiro. Fazia-as com muito desvelo, tentando quase dar-lhes um sopro de vida. Recordo com muita saudade o momento em que me acabou e o sorriso que esboçou ao dizer: - Estás linda, Ritinha!
Cada menina que me pegou desde então, baptizou-me à sua maneira, mas o meu verdadeiro nome será Rita para sempre.

Com o passar do tempo, foram aparecendo bonecas de todas as cores e tamanhos, com vários penteados e representando várias idades. Cada vez mais sofisticadas: mexem os olhos, têm roupas, choram, dizem palavras, andam… Eu sei lá! Cada vez me fui sentindo mais pobre, mais pequenina e mais temerosa de perder o afecto da minha dona. Mas ela não me renegava. Era ao meu lado que ela dormia, era eu que a acompanhava nas viagens e até me levava para a escola. Ao contrário de mim, parada no tempo, ela foi crescendo, fazendo-se mulher, começou a namorar e um dia casou. Quando veio buscar as coisas para levar para a sua nova casa, fez uma escolha de vários objectos. O meu coração (ou lá o que seja…) fez-se muito pequenino e tremi. Com surpresa minha (ou talvez não) agarrou-me e disse: - Não te podia abandonar! Foste a minha companheira de todos os dias, vou guardar-te e quem sabe se um dia não farás as delícias das filhas que eu pretendo ter!Guardou-me numa arca na arrecadação e ali fiquei esquecida. Um dia, porém, senti os fechos da arca a ranger, vi a luz do dia e ouvi a voz da minha dona e de uma criança:
- Filipa, esta é a boneca de que tinha falado. Eu dormia com ela todas as noites. Gostas?
- Gosto sim, mamã.
E logo me agarrou e me apertou contra si. Uma vida nova começava para mim. Até quando? O quarto dela estava cheio de brinquedos e de lindas bonecas. Como poderia ela dar alguma atenção a esta pobre boneca de trapos?

Filipa, no entanto, gostava mesmo de mim. Levava-me para junto dela às refeições e quando tinha sono. Coisa curiosa, chamava-me pelo meu nome – Ritinha. Por mero acaso.
O tempo passa muito rápido para os homens, em breve a Filipa foi para a Escola e passou a não ter tempo para mim.
Na Escola fizeram uma campanha para angariação de livros, material escolar e brinquedos para enviar para Timor. Com a ajuda de sua mãe, começou a escolher livros e brinquedos e a metê-los numa grande caixa de cartão. Quando chegou a minha vez, estremeci. Filipa pegou-me, deu-me um beijo e disse para a mãe:
- A Rita vai para Timor porque gosto muito dela. Não merece passar os dias aqui abandonada. Tenho a certeza que irá alegrar uma menina timorense!Se eu fosse uma daquelas bonecas modernas, decerto as lágrimas teriam escorrido pela minha cara…
Passados quinze dias, já ia eu num avião com rumo à Austrália e posteriormente a Timor – Lorosae.
À chegada os vários contentores foram colocados num hangar militar e, passados dias, começou a distribuição pelas escolas. Fui parar a uma escola em Baucau.
Aberta a caixa onde eu estava, começaram a tirar para fora todos os brinquedos. Em frente, de olhos abertos, estavam numerosas crianças extasiadas, com ar pobre mas limpo. Uma menina, de vestidinho branco e sandálias em plástico, correu para mim, agarrou-me e perguntou se podia ficar comigo. Foi-lhe dito que sim e ela, sem querer saber de mais nada, agarrou-me contra o seu peito e correu para a sala de aulas.
Chamava-se Domingas e nunca tinha tido brinquedos nem bonecas. O dinheiro em casa mal chegava para a comida. Mirou-me e fez-me voltear nas suas mãos:
- Vais ser a irmã que nunca tive, a minha irmã portuguesa!
Finalmente senti-me feliz, deixei de ter medo e, pela primeira vez na minha vida, senti orgulho em ser uma boneca de trapos.

Gabriel de Sousa

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