sábado, 25 de setembro de 2010

MEMÓRIAS DE ADRIANO
(conto)

Adriano Marques encontrava-se agora num albergue, adaptação de um antigo convento. Arrastava consigo um passado bastante sofrido. Tinha os oitenta anos já bem perto e todas as maleitas próprias da idade.
Nascera numa família muito modesta e que vivia com enormes dificuldades. Fez apenas a instrução primária o que, para a época, era já considerado um privilégio. Ajudou os pais no trabalho do campo e, logo que teve idade, nos anos 1950, inscreveu-se como voluntário para a Marinha. O tempo ali passado (cerca de quatro anos) foi um parêntesis feliz na sua vida, como veremos mais adiante.
Ofereceram-lhe emprego num estaleiro naval e ele aceitou, embora temeroso e cheio de dúvidas. Ali permaneceu vários anos, mas veio uma vaga de despedimentos e encontrou-se no desemprego. Tinha-se casado entretanto com a Anabela, costureira muito conhecida na terra, pelo jeito que tinha para os lavores. Vinha a caminho o primeiro bebé. Adriano sentiu-se desorientado, apesar da força que a mulher lhe tentava incutir.
Quando a roda da sorte desanda, não há nada porém que se possa fazer. Uma noite, Anabela sentiu-se mal. Transportada de urgência para o hospital, veio a sucumbir de complicações relacionadas com a gravidez interrompida. Adriano não chegou a ser pai e ficou viúvo.
A sua vida nunca mais foi a mesma. Eram desaires atrás de desaires. Vivia de pequenos empregos sem futuro, de expedientes e da ajuda de alguns vizinhos mais idosos que o conheciam praticamente desde criança. Chegou a pedir esmola e a lavar e arrumar automóveis. Começou a meter-se na bebida, logo que tinha algumas moeditas. Como um desastre nunca vem só, teve um AVC e ficou dependente. A pensão que passou a receber, mal lhe dava para comer e para os remédios. Uma assistente social vinha diariamente tratar dele, mas o dinheiro já não dava sequer para pagar a renda da velha casa em que habitava.
Conseguiram metê-lo num lar, mas o eterno problema da reforma miserável levou a que tivesse de ser estudada outra solução para a sua triste sobrevivência.

O albergue, onde Adriano foi colocado, estava ocupado sobretudo por imigrantes “sem abrigo” de países do Leste. Tinham várias camaratas, balneários e WC. Uma carrinha trazia os pequenos-almoços de manhã e uma equipa da segurança social ocupava-se da higiene e da toma de medicamentos de alguns acamados. Durante o dia eram servidos os almoços e os jantares.
Sentia-se porém como numa pequena Torre de Babel, com cada um a falar a sua língua. Havia bósnios, croatas, ucranianos e sobretudo romenos. Africanos haviam poucos. Portugueses pouquíssimos e havia um timorense. Notórias dificuldades de comunicação. Pior ainda para Adriano que, entre outras sequelas do AVC, ficara também com dificuldade em articular as palavras.
Chegada a noite e, antes de adormecer, Adriano ficava muitas vezes a pensar nos paradoxos da vida. Ali estava um grupo de pessoas irmanadas pela desgraça e pela pobreza, mas separados pela linguagem. Durante o tempo em que estivera na Marinha, quantas vezes sentira a alegria de falar e de se entender com pessoas pertencentes a outros povos e raças, mas com uma língua comum, que servia para unir as pessoas em qualquer parte do Universo.

Durante os quatro anos que esteve na Marinha, percorreu meio Mundo. Em diversos portos, sobretudo nos das ex-colónias, era-lhes permitido desembarcar e ter dias livres. As guerras de libertação e as independências ainda vinham longe.
Assim conheceu Santo António do Zaire e Luanda, em Angola; Lourenço Marques (hoje Maputo) e Beira, em Moçambique; Macau, território na China, e Goa, na então “Índia Portuguesa”. Fizera também uma viagem ao Brasil.
Que sensação estranha, mas agradável, ao encontrar os habitantes de outras terras, outras gentes, por vezes de outras raças, a falarem a mesma língua. Com as suas diferenças e os seus sotaques distintos, mas constituindo um verdadeiro elo a unir pessoas que habitavam continentes a milhares de quilómetros de distância.
Com muita pena sua, nunca fora a Timor, mas visitou Malaca na Malásia. Depois de ter sido território português, Malaca foi governada por holandeses e ingleses. No entanto, existe um “Bairro Português” onde, passados alguns séculos, podemos encontrar luso-descendentes, que falam um pouco da nossa língua. Sem qualquer ensino especial, apenas por tradição oral.
Adriano comove-se, ainda hoje, ao relembrar o encontro que tivera com um malaio, à sombra de uma frondosa árvore, e as palavras que ele lhe dissera num português inteligível: «A língua serve de ponte para nos entendermos. Pena é que essa ponte não sirva para a podermos atravessar e chegar até Portugal. Como eu gostava de conhecer o País dos meus antepassados!».

Adormecia muitas vezes com um sorriso nos lábios. Frequentemente sonhava com viagens e até com a mulher. E com o filho que não chegara a ter.
Quando acordava, lembrava-se que lá fora havia gente feliz. Talvez não sonhassem no entanto como ele. Para eles, os sonhos seriam sobre o dia-a-dia e a luta pelo futuro. Para si era o passado.
Apesar de todos os dissabores que a vida lhe trouxera, Adriano Marques considerava-se feliz, a seu jeito. Não se arrependia de ter nascido e dava graças a Deus por ainda estar vivo.

Gabriel de Sousa


NB – Menção Honrosa no XIII Concurso Literário Algarve - Brasil / 2010Clube da Simpatia – Olhão

Sem comentários:

Arquivo do blogue

Acerca de mim

A minha foto
- Lisboa, Portugal
Aposentado da Aviação Comercial, gosto de escrever nas horas livres que - agora - são muitas mais...