sábado, 18 de agosto de 2012

UM ESTRANHO EM CANNES
(conto)

Frederico conduzia diariamente um luxuoso autocarro de turismo, que fazia excursões através da cidade de Lisboa e dos seus arredores. Em cada lugar em que paravam, e enquanto a guia turística fazia o seu trabalho descrevendo a história dos locais e dos monumentos, com algumas curiosidades à mistura, ele empunhava uma câmara de vídeo e gravava aqueles instantes, que ficariam para a posteridade como belas recordações.
Durante o percurso mais longo, já de regresso ao ponto de partida, colocava a cassete no sistema audiovisual da viatura e dava assim ensejo a que os turistas revissem os momentos que tinham acabado de viver.  Muitos deles interessavam-se em ficar com os filmes e Frederico de boa vontade os contentava, mediante um pequeno contributo monetário, apenas o estritamente necessário para a compra da cassete e pagamento dos portes de correio.

Certo dia, um dos excursionistas gabou de forma entusiástica o trabalho de Frederico, garantindo-lhe que ele fazia os filmes de um modo muito profissional, não se limitando a reportar o que estava a ver, mas fazendo-o de uma forma artística, agradável e esteticamente irrepreensível. Ele sabia do que estava a falar, pois era produtor cinematográfico. De nacionalidade norte-americana, estava a passar uns dias de descanso em Portugal e trabalhava ora em Espanha ora nos Estados Unidos.
- Já alguma vez pensou em fazer um filme a sério, daqueles que se vêem nos cinemas? Se alguma vez lhe ocorrer uma ideia, conte com a minha cooperação!
E William Morgan deixou-lhe o seu número de telefone:
- Terei muito gosto em ajudá-lo. Tenho o pressentimento que seria um êxito…

Frederico foi para casa e, nessa noite, quase não dormiu. Há muito que idealizava fazer um filme sobre a emigração portuguesa nos anos 1960/1970. Talvez tivesse surgido agora essa oportunidade.
            Levou vários dias a pensar no assunto e, quando julgou ter as ideias mais amadurecidas e arrumadas na cabeça, decidiu telefonar ao “amigo americano”:   
            - Fala Frederico Ribeiro. Ainda se lembra de mim?
            - Claro que sim! Diga.
            - Já tenho um projecto e, com alguma ajuda, poderia concretizá-lo. Será um filme barato. Os actores serão meus familiares e alguns amigos dos tempos em que fiz teatro amador. A única despesa seria a deslocação deles a França, alguns dias, com estadia muito económica. Que acha?
            - Fiquei com alguns contactos aí em Portugal. Eles podem-me arranjar patrocínios para essas despesas. Você, está a entusiasmar-me!
            - Esquecia-me do principal. Para mim pelo menos. Precisarei de uma máquina de filmar a sério. Profissional. Mesmo emprestada.
            - Também se arranja. Para a semana vou aí a Lisboa e falaremos melhor.
            - Cá o espero, senhor Morgan. Fico ansioso.

Foi escrevendo um guião para o filme que se chamaria, estava decidido, “O Drama Lusitano”. A acção começava a decorrer no princípio da década de 1960, com o eclodir das guerras coloniais. O desemprego e a miséria na Metrópole. A passagem das fronteiras “a salto”, sem documentos e sem passar pelos controlos fronteiriços, muitas das vezes com a ajuda de “passadores” que lhes pediam quase todo o dinheiro que tanto lhes custara a amealhar. A chegada a França, sem conhecer ninguém e sem falar a língua do país. Sentiam-se já divididos entre o quase arrependimento de terem partido e a esperança de construírem uma vida melhor.
            A custo, arranjavam empregos sobretudo na construção civil e como mulheres-a-dias. Habitavam em locais mais que precários, sem o mínimo de condições. Foram-se no entanto adaptando e eram reconhecidos como óptimos trabalhadores. Acumulavam biscates e, durante anos, não voltaram a Portugal, para poderem poupar para o futuro. Começaram a incluir no seu vocabulário palavras francesas e, a pouco e pouco, já falavam um misto das duas línguas muito característico e que lhes facilitava a vida.
            Constituíram famílias e os filhos frequentaram as escolas locais. Depois do 25 de Abril de 1974, muitos deles começaram a vir passar férias a Portugal, sonhando muitos com a aquisição de uma casa nas suas terras e com um regresso definitivo quando fossem mais velhotes. Os filhos iam-se enraizando em França e já era frequente ver apelidos portugueses em todos os ramos de actividade, até em autarquias e na diplomacia. O protagonista principal da história imaginada por Frederico, passados quase cinquenta anos, sem nunca ter voltado a Portugal, decidiu vir aqui passar o resto da sua vida, depois de ter perdido a mulher e de ter os dois filhos bem inseridos no contexto local. Veio encontrar um país incrivelmente mais moderno, como nunca imaginara, mas em crise profunda. De novo o desemprego, a pobreza, a miséria, a fome, os sem-abrigo e o apelo à emigração. Era de novo o drama lusitano. Devia ser uma fatalidade nossa.

Como prometido, William Morgan veio a Lisboa e encontrou-se com Frederico numa esplanada do Rossio:
- Pode contar com o dinheiro necessário. Vamos arriscar, mas tenho confiança no sucesso. Ali, no meu carro, tem a máquina de filmar e algum material técnico. Tenha cuidado, pois foi-me emprestado por um conhecido cineasta e custa muito dinheiro. Quando tiver tudo filmado, trataremos da parte técnica: montagem, música, etc..
- Não sei como agradecer-lhe!
- Se o filme ficar bom, pensaremos depois na sua distribuição para todo o Mundo. Só em Portugal, a coisa é fácil, mas para o estrangeiro será mais complicado, pois implica a dobragem ou a legendagem. Cheira-me porém que você ainda vai ser famoso e que ganharemos rios de dinheiro. E soltou uma gargalhada.
- Oxalá, senhor Morgan. Que Deus o oiça. Estou-lhe muito grato. E, ao mesmo tempo que dizia isto, tocou com o seu cálice de Porto no cálice do americano. - À nossa saúde e ao nosso sucesso!

Procurou os familiares e amigos que tinha “debaixo de olho” e a todos tentou aliciar para o projecto. – Fazemos um pacto sagrado: Se tivermos êxito, ganhamos todos por igual; se falharmos, perdemos todos. Que acham?
            Familiarizou-se com a máquina de filmar e restante material e pediu um mês de férias na empresa onde trabalhava. Disse francamente porque necessitava daquele dias e os patrões desejaram-lhe boa sorte. Indicaram-lhe mesmo alguns contactos em França que poderiam ser úteis.
            Dias depois, seguiram para Paris, onde se passaria quase toda a acção. Instalaram-se num pequeno albergue da juventude que, naquela época, estava vazio e meteram mãos à obra.
Tudo correu bem, com verdadeiro espírito de equipa e beneficiando do bom acolhimento das comunidades portuguesas, que lhe davam mesmo dicas sobre a vida dos primeiros emigrantes. Pouco mais de duas semanas depois, já eles estavam de regresso, prontos para filmar as cenas que se desenrolavam em Portugal.
Frederico telefonou ao senhor Morgan para lhe dar conta do andamento do projecto. – Mais dois dias e já não me encontrava na Europa. Passo amanhã por aí e se, como espero, achar interessante o seu trabalho, deixarei tudo encaminhado para a finalização e distribuição do filme. A coisa ainda demora, mas espero que tudo esteja terminado quando voltar dos States. – Cá o espero, amigo Morgan.

O filme foi estreado, primeiro numa sala de Lisboa e logo de seguida em vários  outros pontos do País. Foi bem recebido pelo público e pela crítica. Frederico já recomeçara a trabalhar na empresa de turismo, mas andava cansado. Quando chegava a casa, muitas vezes nem dava tempo para se deitar na cama. Via um pouco de televisão e adormecia no sofá, onde ficava até às tantas da madrugada.

Frederico sentiu-se um estranho naquela imensa sala de espectáculos. Enterrou-se, poltrona abaixo, para passar mais despercebido. O seu filme fora nomeado para a Palma de Ouro do Festival de Cannes, mas ele ainda nem queria acreditar.  O nome do vencedor ia ser desvendado dentro de instantes.
            - E a Palma de Ouro vai… para o filme português “O Drama Lusitano”, do realizador Frederico Ribeiro! Sentiu-se ainda mais pequenino. Se tivesse ali um buraco, teria mergulhado nele
            O telefone tocou e ele deu um salto no sofá. Teve dificuldade, assim de repente, em discernir onde acabava a realidade e começara o sonho. Pegou no telefone e ouviu a voz  de Morgan: - Boas notícias! O filme vai ser apresentado em França, a que se seguirá o resto da Europa e mais tarde as Américas. Está a ser um êxito. Vamos ficar ricos! E deu uma risada. - Obrigado amigo, ainda estou meio a dormir. Estava a sonhar… Nem imagina com o quê! Boa noite, amanhã falamos. Estou meio tonto.
Gabriel de Sousa

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